5.05.2006

I

I. Quem saberá se ouvi o que disseste naquela manhã? O sono era ainda rei dentro de mim. E o sonho estava ainda vivo nos meus olhos, já então abertos. O que quer que tivesses dito não pude esquecer. Nem, tampouco, lembrar. Porque não meu. Essas palavras eram, também, fruto do teu sono e do teu sonho (não tuas por isso). Éramos ambos alucinados. Vivíamos o transe, o sufoco calmo da noite possessa de nós – sonâmbulos matinais. Do que falaste, afinal, nem tu te lembras. Fazia vento e chuva lá, do outro lado da janela branca, e nós, felizes, éramos mudos no que dizíamos – pois que não nos falámos – e surdos no que ouvíamos – pois se não nos escutámos. É-me difícil confessar que não ouvi da tua boca essas palavras que não sei sequer se as pronunciaste. Falarei, portanto, de um momento que não sei se foi vivido, de palavras não ditas. De um sonho, talvez. Insegurança. Este o meu mote.

II

II. Acordei de novo nesta nossa casa. Fixei as coisas com os olhos e espreguicei-me levantando os braços como a pedir uma esmola aos deuses. Continuei sentado na cama. Pensei a infinidade de coisas que se iriam passar se me levantasse e na infinidade de coisas que perderia se não o fizesse. Senti-me ainda acompanhado de um sono leve, desgrenhado como os cabelos àquela hora. Olhei o teu corpo ainda inerte: fixei a tua boca e pensei aquelas palavras inauditas que perdemos. Pensei nessa tua boca muda. Nos teus lábios quentes no contacto com os meus. Pensei os teus olhos sem os olhar. Pensei todo o teu corpo. Fazia-se tarde e, nesse dia – tal como nos outros – o trabalho esperava à mesma hora. Separámo-nos com um beijo. E o teu corpo afastou-se, à medida dos teus passos e dos meus. Pensei a nulidade do mundo, o falso objectivo da posse de uma coisa, a infelicidade dos que têm e a infelicidade dos que não têm. Ou sonharia ainda? Soaram-me na mente as palavras de ontem. Seriam as mesmas? Em que palavras penso? De que falo eu aqui?

III

III. Olhei-te enquanto cozinhavas os cogumelos com natas. O teu corpo continuava um ritmo emergente da terra. Tu eras o seu máximo. Dirigi-me a ti e beijei-te o pescoço livre. Rolámos no chão cor de barro, e fomos um. Sofregamente. Quem fomos nessa hora? Um outro momento. Novas palavras. Desta vez ouvidas. Sopros nascidos do corpo em combustão consciente e sem sono. Era noite pequena. Ouvia-se música em fundo, e as frases mansas construíam-se na leveza do ar, condicionado pelos homens, pela electricidade inventada. Estávamos sós e, ao mesmo tempo, envoltos da respiração dos outros, de uma radiação dos corpos suados na calma «quentura» das paredes castanhas. Envolvemos as mãos e éramos, de novo, um. Um só olhar, um só respirar, um só tremor de pele. Mas aquelas palavras que não ouvimos latiam em nós como as artérias apertadas da mão quando há pressa. Duvidámos daquele momento em que imperou uma telepatia muda e nos falámos sem gestos, sem sinais, sem falar. Dissemos algo que nos fez parar sem, no entanto, sabermos porquê. Saímos daquele pequeno bar. Fazia frio. Um vento ligeiro acordava-nos, de novo, rente ao mundo.

IV

IV. Doíam-me as costas quando o despertador tocou. O telefone do serviço estava estragado. O almoço, comi-o sem companhia, e caiu-me mal. Cólicas. Tomei um comprimido e o dia acabou numa fila de trânsito, a cem metros de casa. De há uns tempos a esta parte a temperatura do ar tem baixado. Ressinto-me desse estado invernal da atmosfera e essa tristeza só se dissipa quando adormeço.

V

V. Penso que, apesar de tudo, ainda não te conheço. Que o teu corpo é ainda uma incógnita na ideia que dele faço. Conheço-te tão bem como conheço os pássaros que afago na concha dos dedos. Mas não lhes sei o interior, a alma, o desejo visceral de viver: a sua fome, a sua sede: de onde nascem e quando se saciam. És um mundo inteiro perto de mim – que desconheço –, fonte de calor e bafo de prazer nas horas da noite. Não sei o que te dizes quando te calas, quando me olhas sem dizer nada. O que decifro em ti são os teus olhos, a tua face subitamente transformada em vale aberto de sorrisos, de lágrimas e de outros estados de alma que não sei dizer aqui. Pronuncio-te, e revivem no meu corpo sensações firmes que descobri ao teu lado e em ti. Proliferas na atmosfera que respiro, e não me canso de repetir palavras tuas se não estás, e de fundir em cores, no mapa das palavras, tudo o que és e alimentas em mim, teu protegido e protector. Há árvores que me lembram tudo o que és: braços estendidos e livres, dirigidos ao infinito de uma altura que não se mede, propondo a liberdade dos corpos e das formas; da alma e dos sentimentos. Procuro-te, por isso, nos jardins, nos bosques livres e nos musgos das pedras; nas carcódias dos pinhos bravos e nos carvalhais de Outono, libertos de folhagem.

VI

VI. Quero ser o teu amante invisível, o teu amado eterno, o perfume do teu beijo, o teu calor sem lenha e sem rastilho. Tenho, em mim, o poder de te desejar, de te disfrutar e ser o teu mel, mesmo quando o mel é amargo. Folgo em ter-te comigo. O meu vinho é a tua morada, e o nosso beijo viverá ebriamente quando os anos passarem sobre as horas. Sou eu quem fala.

VII

VII. Dificilmente respiro hoje. Amanhã quem saberá se sou eu quem fala aqui das coisas minhas sobre ti. Amei-te como um corpo que se ama provisoriamente. E os corpos que assim se amam são etéreos. Já estou esquecido do que sou. Não sinto aquilo que deveria sentir. Sou a mágoa imensa de te deixar porque tu não queres, e porque tu moras longe de onde eu chego com o meu andar. Serei sempre um pequeno ninho sem ovos.

VIII

VIII. Penso agora mais claramente as palavras que há pouco proferi. Porque o teu cheiro ainda habita o meu mundo. Porque a humidade lúcida dos teus lábios resiste ainda nos meus. Finjo-me afastado de ti e fujo aos teus olhos quando há mais gente à nossa volta. Então não sou eu. Nesses momentos sou a mentira, no que faço e no que digo. E tu calas os olhos, e o teu rosto mergulha em águas onde eu nunca me lavei. Despeço-me por hoje, e talvez para sempre, daqueles dias em que conheci unicamente o vazio. Encontrei-te e fiz-te em mim como um desejo que se quer ver desejado. Quero-te e pronuncio-te como o impossível conseguido. Com os olhos.